Lá vem ele. Queria poder esconder a preocupação do meu rosto, mas não dá. Hoje não. O guri vem cambaleando até mim com o rosto ensanguentado. O que devo dizer a ele? Já é o nono assalto e o limite desse garoto ficou para trás há muito tempo. A mandíbula está quebrada, mas ele tenta esconder isso do juiz.
Até agora, ele fez tudo do jeito que ensinei. Todos os socos dele estavam pesados, suas pernas velozes e seus movimentos extremamente precisos. Não poderia estar mais orgulhoso…
Mentira.
Fico mais orgulhoso, sim. Fico orgulhoso quando ele quase cai e posso ver o corner oposto na brecha que surgiu. Dá para ver as pernas do campeão.
Elas estão tremendo.
O guri levanta o olhar inchado e tenta esboçar um sorriso, mas sente muita dor. Primeiro, preciso me concentrar no que dizer a ele quando precisar de instruções. Recusando-se a sentar no corner, encosta nas cordas e olha diretamente para mim.
Percebo que não sei o que dizer. Eu disse para esse garoto tudo o que eu poderia ter dito e ele memorizou cada palavra. “Cada gota do seu suor carrega consigo o peso da sua vontade” . É assim que deve ser. É assim que se forja um novo campeão. Se eu morresse agora, diria que eu fiz o que deveria ter feito.
Mas o guri ainda não. Enquanto estou perdido em pensamentos, ele se agarra com as luvas às cordas, para se manter de pé. Os outros segundos ajudam-no a cuspir o sangue. Vou até ele enquanto me preparo para estancar os sangramentos acima do olho dele.
– Quero que me responda sem falar – começo, o mais rápido que posso – aqui, beba água. Cuidado.
O olho inchado do garoto me olha em questionamento.
– Agora não é o momento para se abater. Quero te dizer uma coisa, garoto – faço uma pausa, enquanto respiro fundo – lembra-se de quando te encontrei? Quando passava perto do orfanato e um garoto saía de lá correndo, mas ninguém conseguia correr atrás dele.
Posso ouvir a risada misturada com dor.
– Exatamente, garoto. Você é mais rápido agora, mas vi talento em você. Resolvi dar o braço a torcer. Encontrei uma casa pra você. Você já tinha seus quinze anos e me deu muito trabalho.
O rosto dele diz um “me desculpe”. Um daqueles pedidos debochados de quem não está realmente arrependido de nada. Não deveria estar, mesmo. Esse guri me trouxe muitas alegrias.
– Naquela vez, quando enfrentamos o campeão nacional, lembra do que eu disse?
Ele assente. Continuei estancando o sangramento.
– Ele era forte. Muito, muito forte. Mais do que você pensou que poderia superar. Uma pedra, que fazia seus pés sangrarem. Hoje não é diferente.
Saio da frente dele, para que possa ver o corner oposto.
– Vê aquelas pernas? Estão tremendo. E não só as dele, moleque. As minhas também tremem, mas de emoção. Essa não vai ser a última pedra no seu caminho, mas depois dela, você vai sentir um pouco menos de dor.
Quando ele levanta os olhos, a alegria é visível.
– Quero que você vença, garoto. Ele não é de aço e a força de vontade dele vai quebrar.
O moleque bate as luvas.
– Quando seus pais se foram, você não fugiu, guri. O que você fez? – pergunto, dando o olhar mais confiante que consigo.
Em resposta, o garoto coloca o protetor bucal.
– Isso mesmo – respondo – Lembre-se disso sempre que a dor vier, garoto: a vida não foi suficiente para te derrubar.
Sinto um aperto no peito enquanto lhe seguro os ombros.
– Quando você quebrou a sua mão direita e pensou que nunca mais lutaria, o que você fez?
O moleque bate no peito.
– Isso mesmo – continuo – e aqui está você, lutando contra o campeão mundial. Quando você caiu três vezes hoje e pensou que seria o fim, o que você fez? – pergunto.
O garoto cospe sangue e bebe mais um pouco de água, antes de me lançar um olhar fervososo de determinação.
– E agora, guri, que você está aqui – sem perceber, meu tom de voz aumenta – o que você vai fazer?
Sem abrir a boca, fica um som rouco preso à garganta dele.
– Quando os socos dele te acertam e você tem vontade de largar tudo, o que você faz? – grito enquanto o seguro pelos ombros.
O barulho rouco de sua resposta estava mais intenso.
– Nos momentos em que você é o último a acreditar em si mesmo, o que você faz? – continuo, com o peito gelado e o coração numa palpitação incontrolável.
Em resposta, ele cerra os punhos.
– Quando todos dizem que tudo está perdido e nada mais importa, o que você faz? Quando a vida te lança ao chão e te faz provar do seu próprio sangue, me diga, o que você faz?
O garoto coloca as mãos sobre os meus ombros, mas já não olhava para mim. Vê alguma coisa atrás dos meus ombros. Também não é o campeão. É a vida. Meu peito gelado não me deixa mais mentir.
– Quando a vida te tira tudo, guri, quando não há mais nada a ser feito, o que você faz?! – berro, sem conseguir mais controlar a minha emoção.
Meu garoto levanta a guarda e, sem olhar para mim, vai andando em direção ao que precisa fazer. É tudo o que eu quero e tudo o que preciso. É a melhor resposta para todas as perguntas vazias da vida.
– Isso mesmo, guri.
Você continua lutando.
Música: Andando sobre Pedras
Artista: Pense
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Eu leria isso mais de mil vezes!!! Esse conto me prendeu de um jeito inexplicável, e também me fez refletir sobre minha vida… Eu adorei!
Caramba, não consigo nem explicar o quanto me arrepiei com esse conto, isso tá incrível!!
Ao ler esse conto fico pensando na percepção que faz o Jorge ver uma história tão inspiradora apenas ao ouvir uma música! Adoro seus textos.
“Não há nada na escrita. Tudo que você precisa fazer é sentar-se diante da máquina de escrever e sangrar”.
Frase do Ernest Hemingway que levo pra vida hahahah
Muito show!! Parabéns pelo texto
Sempre me questiono o poder das palavras alheias na vida do outro, o quão somos incríveis, poderosos e cheios de uma força capaz de derrubar tudo, força essa que vem de dentro. Muito forte o texto, ele traz a tona tantas coisas importantes e cheias de significado. Parabéns Jorge, orgulho master de ti <3
Texto maravilhoso.
Devo dizer que a inspiração e o fervor que são dados ao “guri” tocam na alma, aumentam a determinação. Fez-me lembrar do “Não importa o quanto você bate, mas sim o quanto aguenta apanhar e continuar”, embora que a inspiração na música seja clara. Parabéns, Jorge.
Muito obrigado, Wesley! Essa com certeza foi uma inspiração forte para o conteúdo dessa história – e casou bem com a letra da música.
Agradeço o comentário e espero que continue acompanhando aqui 😉
Eu amo esse texto pra sempre! Continue lutando, Guri!
Você merece o mundo e nada menos do que isso!
👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼🎶👊🏻