Rebirth (2001) é um álbum que carregava muita responsabilidade. Ele enfrentou três grandes desafios. Primeiro: precisava provar aos fãs que os novos membros do Angra (Edu Falaschi, vocal; Felipe Andreoli, baixo; e Aquiles Priester, bateria) eram competentes para substituir Mattos (vocal), Mariutti (baixo) e Confessori (bateria), que deixaram a banda pouco tempo antes. Segundo: adaptar-se, encontrar um novo processo criativo sem os antigos colegas de banda e incluindo os novos. Terceiro: se propunha a ser um álbum conceitual, em que todas as músicas juntas contavam uma única história. Para deixar a coisa ainda mais interessante (ou confusa) essa história foi contada de trás para frente.

O resultado é um dos álbuns mais aclamados do metal brasileiro, que ditaria a estrutura do processo criativo da banda para os anos vindouros. Renascia ali o Angra.
O enredo do álbum em si já foi alvo de debate algumas vezes. Honestamente, eu acredito que é papel de cada um atribuir sentido à história contada pelo Angra, por isso, não vou transcrever literalmente ou narrar o que acontece no álbum. Se você procurar por isso, pode encontrar outros artigos que explicam o enredo criado por eles. E, claro, deve ouvir o álbum. Minha proposta aqui é fornecer profundidade e referências para compreender melhor o conteúdo das letras do Angra.
Estrutura
Em 1949, Joseph Campbell publicou O Herói de Mil Faces, propondo que todas as mitologias e religiões do mundo tem alguns pontos em comum. Ele correlacionava, por exemplo, como a figura dos heróis gregos estava conectada com a trajetória de Jesus Cristo.
O livro utiliza os estudos de Freud e Jung para explicar como todos os mitos do mundo seguem a mesma estrutura – e como tudo isso está conectado ao desenvolvimento psicológico do indivíduo.
Campbell sugeriu que todas as histórias da humanidade seguiam a estrutura de uma única história, conhecida como monomito. Surgia ali o que ficou conhecido popularmente como a Jornada do Herói.

Além de fornecer uma estrutura para o álbum, a obra de Campbell nos dá uma perspectiva diferente: a do desenvolvimento pessoal do indivíduo através do ciclo e da jornada.
Segundo Campbell, o herói é alguém que parte do mundo comum para entrar em uma terra mágica, com a qual não está familiarizado, e lá operar mudanças. Nesse processo, ele se conecta com o Divino e se transforma, também. Ao final da jornada, ele retorna ao mundo comum com o conhecimento e a natureza divina que adquiriu.
Este modelo era utilizado em mitos, cuja função era explicar acontecimentos e fenômenos da natureza num tempo muito anterior ao método científico. Se aplicado em sentido mais amplo, o Herói pode se referir a qualquer protagonista: seja ele um herói grego, de fato, ou meramente o personagem que opera as mudanças numa história. O Herói pode ser uma heroína, por exemplo. Toda a estrutura proposta por Campbell é aplicável a qualquer história, respeitadas as devidas proporções e observando sob a ótica certa.
Para compreender em profundidade os estudos de Campbell, recomendo o livro O Herói de Mil Faces, sua obra de entrada para o estudo do monomito.

Renascimento
É crucial para o monomito que o herói morra e renasça. Às vezes em sentido literal, como Hércules, e as vezes figurativamente, como Michael Corleone, de o Poderoso Chefão, tem que “morrer” para que ele se torne Don Corleone. O principal ponto de transformação do protagonista acontece aqui, quando as mudanças que ele está operando no mundo exterior culminam na transformação interior – e na aproximação com o Divino e consigo mesmo, respeitando as teorias de Jung.
Cristopher Vogler, em 1998, se apropriou dos estudos de Campbell e Jung para escrever a Jornada do Escritor, onde ele fornece ferramentas e análises sobre a ficção, e aplica Jung em contextos mais próximos do leitor. É uma forma, mas não uma fórmula. Embora eu não goste de absolutismos, preciso dizer que, para roteiristas e profissionais da escrita criativa, é leitura obrigatória.

Sob a luz de Jung, Campbell e, posteriormente, Vogler, o álbum do Angra ganha profundidade: a história contada aqui, representa o processo de renascimento da banda. Três novos integrantes, uma nova maneira de criar e a reaproximação do grupo com sua própria identidade.
Tá, mas por que de trás para frente?
Rebirth nos trouxe uma das músicas mais importantes do metal brasileiro: Nova Era. Bom, ao menos na minha opinião. Mesmo que você esteja pouco interessado na profundidade da mensagem construída pelo grupo, a frase que abre o disco te acerta em cheio. De alguma forma eu sei que as coisas vão mudar.
A inversão do ciclo faz parte da jornada. Desconstruir cada um dos processos envolvidos na construção da identidade da banda. Este álbum não é apenas uma apresentação da trajetória do Angra; é a própria jornada em si.
Isso não significa que seja um processo fácil: existe muita autocrítica aqui (uma das faixas do álbum se chama “heróis de areia”, afinal).
Claro, pode parecer que quero forçar a barra em querer falar dos estudos que levaram a banda a compor Rebirth, mas isso também evidencia outro aspecto importante do disco: ele ressoa com a história do ouvinte. Além da própria interpretação do enredo do álbum em si, cada canção elabora um pouco sobre o fã, enquanto o indivíduo. Bicho, isso é mágico.
Identidade brasileira
É impossível falar da construção da identidade do indivíduo sem considerar o contexto em que está inserido. Por isso, Rebirth abraça as raízes brasileiras do Angra com elementos da cultura brasileira. Musicalmente, a influência do maracatu pernambucano ao falar do Brasil império na faixa Unholy Wars, onde a jornada retrata o conflito interior e exterior convergindo.
Aqui também é necessário levar em conta que o próprio nome da banda se propõe a abraçar esta identidade: Angra é o nome da deusa do fogo na mitologia tupi-guarani.
Outro destaque é a escrita no álbum. Evidenciando a influência da literatura brasileira, a ambientação e a maneira de escrever lembram muito Dom Casmurro (conflito interno) e Iracema (valorização da fauna e flora brasileiras como parte da narrativa; conflito entre identidade brasileira e portuguesa).
Rebirth foi o álbum que me apresentou ao Angra, e sou um fã desde então. Tem um lugar especial no meu coração, tanto pela minha identificação musical quanto pela construção da identidade que a banda buscava – e eu também – quando o ouvi pela primeira vez. Espero que este artigo ajude você a ouvir – ou reouvir – este álbum com uma perspectiva diferente. A jornada do Angra merece esse cuidado.
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Top de mais Jorjão, espero ver mais textos assim!
Eu sou apaixonada por esse álbum!!